A solidariedade de Dona Maria: Uma história de amor e amizade em tempos difíceis

A solidariedade de Dona Maria: Uma história de amor e amizade em tempos difíceis

Dona Maria Frigo Dentello, de 87 anos, caminha com dificuldade, apoiando-se na parede externa da casa. Equilibrando-se sozinha, atravessa a viela. E, lentamente, sobe o degrau alto da casa vizinha (ali dá enchente), a mão como alça no portão, entra pelo corredorzinho e entrega, através da tela da janela, um punhadinho de cigarros para a Cristiane.

Tez branca, de quem vive na sombra da vida, enclausurada, Cristiane vive sozinha e sempre grita (dá para ouvir seus berros da rua) para a vizinha Maria por uns cigarros, que Maria pega do filho e entrega à vizinha. Para os solitários e tristes, um cigarro é uma companhia e tanto, um santo remédio.

A cena deste domingo (31) se observa em tantos outros momentos dos dias, ao longo de meses e meses, quem sabe há anos.

“Tem hora que ela enche”, desabafa Maria, de grandes bochechas redondinhas.

É emocionante olhar nos olhos da Maria, também redondinhos, e ouvir seu testemunho. A força da verdade é um estufamento do peito, uma pancada na boca do estômago, faz a gente dobrar e deixa os olhos quentes, muito quentes e molhados. Se não comove não é.

Respeita a Dona Maria! Seus cabelos cortados na altura do ombro, com a tintura dourada se esvaindo ao vento, que é bafo do tempo. Está viúva há dois anos, do Nelson, carinhosamente chamado de Nani, que virou passarinho aos 92 anos.

“Acredita que a ficha ainda não caiu para mim? Não acredito até hoje. Ele morreu segurando a minha mão, deu um aperto nela, eu perguntei o que ele queria e não respondeu.”

“Quando a pessoa vai é que a gente se dá conta da falta que ela faz.”

Dona Maria e Seu Nani viveram um casamento longevo: 65 anos juntos. Viram-se pela primeira vez num casamento em Bragança Paulista, no interior. O pai dela logo aprovou o rapaz: ele era um Dentello, de família boa, ela era uma Frigo, todos calçados com a forma da bota italiana.

Dona Maria Dentello devotou sua vida à família e ao trabalho. Criou três filhos (Nelson, Renato e Tânia) e foi chefe de seção em oficinas de costura da região do Bom Retiro, no centro da capital paulista. Foram muitas décadas de histórias enlaçadas, pespontadas, overlocadas e outros recursos narrativos de pôr no corpo.

Até que Nani adoeceu. “Tive de parar de trabalhar. Escolhi. Depois de mais de 60 anos juntos, não iria abandoná-lo quando mais precisava de mim.”
“Não me arrependi do meu casamento. Meu marido não bebia, não fumava, não era de ficar na rua. A única coisa era o futebol, que ele adorava.”
O marido foi um dos mantenedores do time de futebol de várzea Glória, glória ipiranguista. “Jogaram ali o Dissei [o político e empresário Domingos Dissei], o Nico [o hoje delegado Osvaldo Nico Gonçalves]. Quando rapazes, não é? Nunca esqueceram do Nani, mandaram até placas comemorativas para ele.”
Nessa casa assobradada e simples da rua 1822, na várzea do Tamanduateí, onde já ficou ilhada nas enchentes que ainda seguem frequentes ali, está há mais de 40 anos, depois de viver em dois outros endereços do bairro, na rua das Municipalidades e na rua Brigadeiro Jordão. A grande inundação de março de 2019 a deixou com muito pouco, apenas o que havia no andar de cima.
“A gente é pobre, mas tudo bem. Aproveitei os momentos felizes, meus filhos. Tenho nove netos e quatro bisnetos. Se for morrer com a mesma idade do meu marido, ainda tenho uns cinco ou seis anos pela frente. A morte é o destino de todos.”
As bochechas da Dona Maria não é que já foram ainda mais redondinhas que as de agora? A foto do porta-retrato, com o marido e uma das netas, é a prova. Que rostinho redondo bonito, imagem de carne da tranquilidade.
Uma vontade danada de apertar essas bochechas bem apertadinhas com as duas mãos, olhar bem nos olhos bons dela e dizer sorrindo: “A senhora é mesmo uma belezinha”.

 

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